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No STF, o racismo é secular

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Fonte: Site Época/ Por Carolina Brígida - Imagem: André Coelho/O Globo

 

 

joaquim barbosaEra 25 junho de 2003. Os seguranças do Supremo Tribunal Federal (STF) haviam sido informados que, naquela tarde, um negro tomaria posse como ministro – o primeiro que os servidores viriam ocupando o cargo.

Quando um motorista entrou pela porta principal do prédio do tribunal, na Praça dos Três Poderes, foi tratado como rei. Era negro e foi confundido com a nova autoridade. Depois de esclarecida a confusão, os seguranças voltaram aos seus postos para aguardar a entrada do ministro de verdade.

O episódio ilustra como ainda é incomum a presença de negros nos altos escalões – seja há 16 anos, seja hoje, data em que se comemora o Dia da Consciência Negra. Luiz Inácio Lula da Silva queria mudar esse cenário e, para a primeira vaga com a qual se deparou no STF, indicou um jurista negro – no caso, Joaquim Barbosa. Lula queria entrar para a história como o primeiro presidente da República a fazer isso.

A pesquisa “Quem somos”, divulgada recentemente pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), mostra que o percentual de negros entre juízes ainda é minúsculo.

Na primeira instância, dos 2.975 magistrados que responderam à enquete, 47 se declararam pretos, ou 1,6% do total. Na segunda instância, apenas oito dos 378 juízes consultados se declararam negros, ou 2,1% do grupo.

Entre juízes e desembargadores aposentados, o índice de negros é ainda menor: dos 430 consultados, apenas um (0,2%) declarou ter essa cor de pele. Isso mostra que, em gerações anteriores, o cenário racial era ainda mais discrepante nos tribunais do país.

Durante os onze anos que integrou a Corte, Joaquim Barbosa denunciou o racismo que enfrentou na vida e continuava enfrentando, mesmo inserido na cúpula do Judiciário.

Em 2012, perguntado pelo GLOBO se sofria preconceito por parte dos próprios colegas, afirmou: “Tenho quase 40 anos de vida pública. Em todos os lugares em que trabalhei, sempre houve um ou outro engraçadinho a tomar certas liberdades comigo, achando que a cor da minha pele o autorizava a tanto. Sempre a minha resposta veio na hora, dura”.

A situação atual não parece ter mudado, mesmo nos gestos mais sutis. Em junho de 2017, com a intenção de homenagear o colega, o ministro Luís Roberto Barroso se referiu a Barbosa como “negro de primeira linha”.

Dias depois, pediu desculpas publicamente. “Manifestei-me de modo infeliz e utilizei a expressão ‘negro de primeira linha’. Não há brancos ou negro de primeira linha, porque as pessoas são todas iguais em dignidade e direitos, sendo merecedoras do mesmo respeito”, emendou Barroso.

Barbosa não foi, porém, o primeiro a sofrer preconceito racial no STF. Pedro Lessa, mulato, integrou a Corte entre novembro de 1907 e julho de 1921, quando morreu. Conta a historiadora Lêda Boechat que Lessa tinha o temperamento forte. Seu principal opositor no tribunal era Epitácio Pessoa, ministro do STF entre janeiro de 1902 a agosto de 1912.

Certa vez, Pessôa afirmou que seu algoz era “um pardavasco alto e corpanzudo, pernóstico e gabola, ex-Professor da Faculdade de São Paulo, que fala grosso para disfarçar a ignorância com o mesmo desastrado ardil com que raspa a cabeça para dissimular a carapinha”. A anotação fazia referência ao cabelo crespo do colega.

A relação entre os dois, segundo a historiadora, era tensa. “Entre Pedro Lessa e Epitácio Pessôa, em face das diferenças de temperamento, da vaidade e da autoconsciência muito nítida que ambos tinham de seu próprio valor, e provavelmente do desejo de ambos de se afirmarem e influir poderosamente nos julgamentos, as diferenças de tal modo se azedaram que eles terminaram rompendo totalmente um com outro, não se cumprimentando, sequer, no Tribunal”, escreveu Lêda Boechat.

A história se repete. Durante a temporada que passou no STF, Barbosa se destacou como relator do processo do mensalão, que resultou na condenação de petistas e aliados do ex-presidente Lula. Ao mesmo tempo, o ministro tinha a fama de cultivar o temperamento difícil.

Não raras vezes, protagonizou discussões no plenário. E, como consequência, rompeu relações com vários colegas. Se o temperamento era difícil ou não, os psicólogos de plantão que analisem. E deixemos que atire a primeira pedra quem nunca viu o preconceito de perto.