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Coronavírus: ''É o momento de reconstruir um contrato social e tributário mais justo''

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Formação Sindical2

As dissenções entre os governos europeus trazem o risco de deixar apenas opções de dívida pública e monetização pelo Banco Central Europeu (BCE) para financiar as medidas contra a crise da saúde. Mas essas soluções em breve serão insuficientes e politicamente insustentáveis. Uma alternativa é financiar parte das medidas contra a crise com impostos. Essa solução tem várias vantagens: contribuiria para restaurar a justiça social e fiscal que tanto falta; recolocaria o financiamento da crise no quadro de uma discussão democrática, notadamente parlamentar (o que a opção monetária não permite); não se limita apenas ao momento da crise. O confinamento abalou as relações de poder e revelou a utilidade social de cada um: nossa (sobre)vivência depende muito mais de uma enfermeira ou de um [caixa de supermercado] do que de um trader. Mais do que nunca, é hora de reconstruir um contrato social e tributário mais justo.

O INSEE (instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos) estima que o consumo tenha caído 35% em março e que cada mês de confinamento cause uma queda de 3% no produto interno bruto (PIB) anual. Uma paralisia da atividade econômica de dois a três meses levará a uma queda no PIB de 6 a 10%, ou seja três a cinco vezes (superior) à recessão de 2009. Os adiamentos de encargos e as garantias do Estado sobre empréstimos permitirão as empresas resistir um pouco, mas isso não é suficiente.

Para impedir que essa crise se transforme em uma grande recessão de vários anos, o Estado deve compensar totalmente a perda de renda das empresas e famílias já. O plano de recuperação francês (2% do PIB) ainda está longe dos valores discutidos na Alemanha (4,5% do PIB) e nos Estados Unidos (10% do PIB). É verdade que os alemães dispõem de superávits orçamentários e os americanos do privilégio exorbitante de se endividarem ilimitadamente. Este não é o caso da França e de muitos países europeus.

Bomba-relógio

O endividamento público sem o uso de eurobonds é uma bomba-relógio. Nossa dívida pública já representa 100% do PIB e poderia saltar entre 120 e 140% do PIB, segundo dados do banco suíço UBS. Isso nos exporia a uma crise de confiança pior do que em 2011. A emissão de eurobonds permitiria compartilhar a credibilidade comum da União Europeia e reduzir o custo do serviço da dívida. Infelizmente, os alemães e os holandeses continuam a rejeitar essa solução. Em vez disso, eles propõem passar pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), mas isso é sinônimo de condicionalidades muito impopulares nos países do sul da Europa, cujos serviços públicos foram mais prejudicados pelos anos de austeridade.

Nessas condições, o BCE (Banco Central Europeu) aparece como a solução óbvia, a exemplo da última crise. Ou o BCE faz uma transferência direta de dinheiro para a conta de todas as famílias e empresas europeias ("moeda helicóptero"); ou a França e os outros países membros recebem um empréstimo perpétuo do BCE no montante das medidas necessárias para conter a crise. Essa opção teria a vantagem de não sobrecarregar as gerações futuras com o peso da crise. Mas a monetização da dívida pública pelo BCE não é compatível com os princípios alemães e holandeses de estabilidade monetária, nem concebível sem alterar os tratados.

Mais fundamentalmente, uma ação política financiada pela impressão de dinheiro evita sistematicamente o necessário debate democrático sobre redistribuição. A solução monetária certamente faz parte do pacote da crise, mas não pode ser a pedra angular.

Portanto, trata-se de encontrar recursos onde existem. Ora, como sabemos, há quatro décadas o capitalismo financeiro tem promovido uma forte concentração de riqueza no topo da pirâmide social, e criado um pequeno número de indivíduos imensamente ricos em patrimônio e renda. Também favoreceu o surgimento de empresas multinacionais. Essas empresas e seus acionistas aproveitaram a concorrência tributária para fugir do imposto, contribuindo para a deterioração dos serviços públicos, principalmente aqueles mobilizados nessa crise de saúde.

Construindo o próximo mundo

Desde já, várias opções podem ser discutidas hoje no Parlamento para restaurar a justiça social e tributária. Simulamos novas alíquotas para impostos cujas receitas poderiam chegar a cerca de 4% do PIB. Essa ideia, poderia ser adotada pela Europa se vários Estados apoiassem, na esteira da França, a necessidade de financiar de maneira solidária o esforço coletivo, ao mesmo tempo que um vasto programa de investimento público como o sugerido pelo primeiro ministro espanhol, Pedro Sanchez.

Tais medidas envolveriam o risco de sufocar a demanda? Não, pois as altas rendas e patrimônios sobre os quais pesariam esses impostos mobilizariam poupanças para quitar dívidas, não reduzindo o consumo senão na margem. O restante dos franceses, contudo, disporia de meios para consumir. Poderiam essas medidas sufocar a oferta e o investimento? Esses novos impostos pesariam sobre as multinacionais, algumas das quais ainda planejam distribuir dividendos em 2020. Não incidiriam sobre pequenas e médias empresas e, ao contrário, permitiriam apoiá-las.

Em resumo, é por meio de mais justiça tributária que liberaremos os recursos necessários para enfrentar esta crise e construir o próximo mundo. Muito mais do que pensamos, nossas vidas dependem do pessoal médico e dos serviços públicos, no sentido amplo, do pessoal não administrativo das atividades essenciais (comida, energia, limpeza, transporte). Essas profissões, precarizadas nas últimas décadas, pagarão ainda um preço mais alto em face do coronavírus. Agora é a hora de fazer com que os vencedores da globalização de ontem contribuam para dar uma chance às gerações futuras.

Signatários: Lucas Chancel, economista, codiretor do Laboratoire sur les inégalités mondiales ; Anne-Laure Delatte, economista, pesquisadora junto ao CNRS-Université Paris-Dauphine ; Stéphanie Hennette, professora de Direito, Université Paris-Nanterre ; Manon Hennin, economista em setor do governo central ; Thomas Piketty, diretor de estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales, Ecole d’économie de Paris ; Guillaume Sacriste, professor de ciência política, Université Paris-I ; Antoine Vauchez, politólogo, diretor de pesquisa junto ao CNRS, Université Paris-I.

*Publicado originalmente em 'Le Monde' | Tradução de Aluisio Schumacher