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Mafalda: a menina que nunca vai se calar

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O cartunista argentino Quino, o “pai” da Mafalda, morreu em 30 de setembro. Mas a pequena menina que criou, carregada de humanismo, dúvidas, questionamentos sociais, ecológicos e políticos, nunca esteve tão atual

A primeira vez que Mafalda apareceu no jornal argentino Primeira Plana, em 29 de setembro de 1964, causou estranheza aos seus leitores, a maioria adultos, que não estavam acostumados a ver personagens infantis em situações apenas para fazer rir.

Na tira de quatro quadrinhos, ela queria saber se aquele senhor a sua frente era um bom pai. Não satisfeita com a resposta um tanto insegura, questionou se ele se considerava o melhor pai do mundo.

O homem – sim, seu pai – a olhou intrigado e respondeu que não sabia, pois podia haver outros com mais qualidades, enquanto a filha deixava o local sussurrando um “eu já desconfiava”.

Nas tiras seguintes, um tanto mal-humorada, Mafalda andava de um lado para o outro, sempre dentro de sua casa, a desafiar os adultos mais próximos – seus pais –, com dúvidas que pareciam dar um nó em suas mentes.

Irreverente, queria descobrir que diabos é este mundo em que se meteu ao nascer. Para ela, tudo devia ter uma explicação. Sem se dar conta, em uma delas, fez um discurso feminista – que se tornaria uma de suas marcas pioneiras – que levaria a mãe a um choro desolador, diante da realidade que esta parecia não enxergar sobre os rumos que sua vida tinha tomado.

“Quando você se casou, abandonou a Universidade?” Sim, foi a resposta. “Se não tivesse casado, teria terminado os estudos?”. Sim, novamente. Até o desfecho: “Teria, então, uma profissão e seria alguém na vida?”

Criada pelo cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado, o Quino, que faleceu na quarta-feira, dia 30 de setembro, aos 88 anos, Mafalda é o que se pode chamar de uma das mais marcantes e cultuadas anti-heroínas dos quadrinhos.

Poucos personagens latino-americanos foram tão longe e permanecem tão populares. Em Buenos Aires, por exemplo, não existe uma única birosca de souvenires sem seus bonecos, canecas, aventais e camisetas. Uma unanimidade que se estabeleceu a partir da ideia de que é a antítese do herói.

Mafalda é carregada de humanismo, dúvidas, questionamentos sociais, ecológicos e políticos a sua maneira. E tem uma disposição incansável para cobrar responsabilidades pelo que acontece à sua volta – já que a culpa não é sua.

Além disso, Mafalda é dona de um coração imenso. Ao falar, mostra-se o retrato acabado da pureza infantil, que faz de forma astuta e temerária para quem ouve – “Lá vem ela…”.

Ao ler ou ouvir as entrevistas de Quino, não é preciso muito esforço para perceber que essa menina de eternos seis anos de idade representa a alma generosa e transformadora de seu autor.

Como cartunista para adultos, ele sempre procurou ressaltar seu inconformismo pelas incoerências da natureza humana, seus pecados capitais, projetos de poder e relação uns com outros na vida em sociedade.

Por meio dela, deu um xeque mate naqueles que reprimiam o humor gráfico feito por gente grande, em um país de constante instabilidade política – desde a década de 1950, a Argentina vivia crises, com generais que demonstravam de modo explícito suas intenções de estabelecer um regime de força governando o país.

Na verdade, Mafalda nasceu em 1963, para estampar uma campanha publicitária da fábrica de eletrodomésticos Mansfield – por isso seu nome começa com “M”. Felizmente, o cliente recusou o trabalho.

Ao levá-la para os quadrinhos, Quino recorreu a um recurso gráfico que funcionou como uma armadura que lhe permitia dizer o que quisesse, protegido pela inteligência de uma criança. Afinal, quem se levantaria contra uma criatura tão adorável?

Talvez, se tivesse continuado apenas no cartum convencional, que retomou depois que parou com a tira em junho de 1973, seus quadrinhos não teriam sido traduzidos e publicados em mais de 30 idiomas.

Certamente, também, Mafalda não alcançaria tanta notoriedade se não fizesse suas reflexões aparentemente inocentes. Daí outro impacto, dessa vez entre as crianças que cresceram lendo suas tiras e se educando por elas.

Muitas, sem dúvida, tiveram suas descobertas da vida modificadas pelas colocações da personagem que, muitas vezes, não traziam respostas, mas faziam pensar. Do mesmo modo que outro gênio dos quadrinhos contemporâneos, o americano Charles Schultz, com Charlie Brown, Snoopy e sua turma, os Peanuts.

Em comum os dois artistas tinham o fato de terem estabelecido um novo subgênero de quadrinhos, aqueles ditos “inteligentes”. Um pioneirismo que cabia ao também americano Walter Kelly, que lançara, em 1948, Pogo e sua Turma, com parábolas sobre as angústias daqueles anos em que o fantasma de uma guerra nuclear pairava sobre o mundo. Os três teriam uma seguidor à altura, a dupla Calvin e Haroldo, de Bill Watterson, lançada em 1985.

Quino afirmou certa vez que acontece com Mafalda o mesmo que com os Beatles. “Transmite uma realidade que poderia ter sido e não foi, infunde certo otimismo e, sobretudo, atravessa o tempo e perdura”, disse ele.

Mafalda ultrapassou as conjunturas políticas ou históricas, mas os temas e o tratamento são os mesmos que atraem os leitores hoje. Sua preocupação com as relações humanas, de poder, também permanece igual desde a década de 1960.

Mesmo sem Mafalda, Quino mostrou um pensamento direcionado sempre para o mesmo lugar: a busca quase jornalística e de denúncia para mostrar — mediante o riso — a injustiça pensada tanto no âmbito claramente privado, a família, como em um plano absolutamente aberto, o mundo e seus problemas políticos e econômicos.

E teve o privilégio de seguir assim, até o fim, coerente com seu pensamento e história de vida, um cidadão exemplar, sem deixar margens para perguntas desconcertantes de sua querida garotinha.

* Fonte: NeoFeed