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A Esquerda Cordial

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Por Marcio Tenenbaum*

A Revolução Francesa de 1789 foi o primeiro projeto político no mundo ocidental a manifestar a universalidade dos direitos e da cidadania. Diferentemente das revoluções inglesas do século anterior, que apenas almejavam reduzir o poder real em benefício da nascente burguesia rural e posteriormente urbana, o movimento francês expressou seu projeto na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada um mês após a Revolução de julho. O que possibilitou a formulação em tão curto espaço de tempo de uma Carta Constitucional estabelecendo os primados revolucionários não foi somente a tomada do poder pela burguesia, mas a conquista do Estado Francês.

Os ventos vitoriosos que vinham da França traziam esperança para toda uma Europa ainda submetida às estruturas feudais que aprisionavam a circulação de mercadorias e, especificamente, pessoas à terra, impedindo o desenvolvimento do capitalismo. Porém, a reação da nobreza, que perdia tanto as cabeças na guilhotina, como o poder político e econômico, não tardou a ocorrer, conseguindo, ao menos provisoriamente, deter a transformação que tomaria conta de todo o século XIX.

É neste cenário que Hegel, em 1820, apenas três décadas após a Revolução de 14 de Julho, escreve a sua “Filosofia do Direito”, em um momento de frustração com a burguesia alemã que não tomava as rédeas do Estado, à semelhança de seus vizinhos franceses. Quase 100 anos após Hegel, Sergio Buarque de Holanda, procurando desvendar as origens da formação política do nosso país, escreve “As Raízes do Brasil” e aí elabora o seu conceito de “homem cordial”, em um permanente diálogo com as formulações de Hegel.

Hegel afirma que a liberdade só pode ser obtida por meio da conquista do Estado. Tal autonomia é bem diferente daquela dos súditos que, nas monarquias, mesmo tendo a possibilidade da propriedade da terra, serão sempre dependentes de seus soberanos, que lhes concedem privilégios. Para Hegel, os privilégios são voltados exclusivamente para determinados grupos, enquanto que os direitos são universais. O que Sergio Buarque de Holanda faz é precisamente tomar a ideia hegeliana de liberdade e submissão para mostrar que, no Brasil, a relação entre o poder do colonizador e os senhores de terra e escravos é fundada em privilégios e não em direitos. Daí surge a ideia do “homem cordial”, que, diferentemente das críticas da intelectualidade conservadora da época, nada tem a ver com a bondade ou a gentileza do homem comum, mas sim com a característica de elites subservientes e dependentes do poder central.

Em outras palavras, o “homem cordial” emerge em uma sociedade cuja elite depende de privilégios, benesses, seja para a concessão de cargos, a autorização de negócios ou mesmo a obtenção de promoções. Tal característica permeia nossa cultura política e certamente nos ajuda a compreender porque, em nosso país, a concessão dos privilégios terminará por impedir que, no decorrer do processo histórico, ocorra uma tomada consciente do poder pela nossa burguesia.

É necessário entender que mesmo que a burguesia tenha conquistado o Estado, a manutenção das relações estabelecidas por privilégios reforça a relação patrimonialista que permeia até os dias de hoje a confusão entre o público e o privado. Na realidade, a conquista do Estado pela burguesia em 1930, na Revolução comandada por Getúlio Vargas, peca em não permitir a criação de um Estado essencialmente democrático, que garanta direitos universais, e reproduz a relação patrimonialista que existia entre o Estado monárquico português e a colônia brasileira, distribuindo, ao invés dos direitos universais, privilégios a poucos.

Mas o pecado da Revolução de 30 do século passado não é gratuito. Deve-se a uma tradição histórica e cultural da sociedade brasileira: os arranjos pelo alto entre as elites. Para possibilitar a criação de um Estado democrático, a Revolução de 30 precisaria do auxílio das camadas populares para chegar ao poder, o que não foi necessário, ao contrário da conquista do poder e do Estado pelas forças francesas em 1789 ou pelas forças norte-americanas em 1776, na Guerra de Independência contra os ingleses, para ficarmos nos exemplos históricos mais tradicionais.

Por prescindir das forças populares na conquista do poder, do Estado e na sua manutenção, o discurso liberal burguês de igualdade e liberdade em uma sociedade patrimonialista deixa um rastro e um cheiro de hipocrisia. Em nosso país, isso pode ser observado em diversos momentos, mas dois deles, recentes, são muito elucidativos. O primeiro é no chamado combate à corrupção, pretexto utilizado pela elite burguesa em golpes contra governos populares. Nesses momentos, especialmente os magistrados que julgarão os processos dos réus acusados de corrupção, se indignam, ilustrando suas decisões com extensos discursos morais, sem, no entanto, jamais terem se indignado com seus próprios privilégios, que lutam para manter, reforçando o patrimonialismo. No mesmo diapasão, atacam o sistema de cotas e defendem a meritocracia revelando sentimentos que são inerentes à classe social da qual fazem parte os integrantes do sistema de justiça. Daí os ataques tão especialmente virulentos dos nossos magistrados às políticas de ação afirmativa, pelo menos até o julgamento do STF.

Uma sociedade de privilégios para poucos e não de direitos para todos, característica da formação hipócrita da cordialidade entre as elites e o povo brasileiros, tão bem identificada por Sergio Buarque de Holanda, só pode ser quebrada com a tomada consciente não apenas do poder, mas do próprio Estado. E nesse aspecto é importante analisar os governos petistas que chegaram ao poder em 2003.

O Partido dos Trabalhadores chegou ao poder ao vencer as eleições presidenciais em 2002, mas jamais conquistou o Estado. A conquista do Estado significa transformá-lo ideologicamente, de maneira que o poder estatal deixe de assegurar privilégios para muitos e passe a assegurar direitos para todos, tarefa extremamente difícil considerando o patrimonialismo que permeia, por séculos, as relações sociais no Brasil. O sucesso de tal tarefa depende do rompimento com a força deste passado patrimonialista e com o empoderamento das forças populares, transformadas não apenas em consumidores, mas fundamentalmente em atores políticos. Acreditar que a conquista da maioria do Legislativo possibilita a conquista do Estado é uma falsa crença, pois ignora a natureza das relações sociais e regionais do próprio patrimonialismo, que termina por impossibilitar uma eventual maioria parlamentar.

O golpe parlamentar-midiático-judicial de 2016 deixou claro que a classe dominante não pretende renunciar aos seus históricos privilégios, mesmo que nenhum dos governos petistas tenha tido nem sequer a oportunidade de arranhá-los. Parece não haver, na sociedade brasileira, a possibilidade do compartilhamento de espaços públicos com setores antes destinados a permanecer nas cozinha ou nos elevadores de serviço.

O “homem cordial” de Sergio Buarque de Holanda acreditava que por deter propriedades, bens e ainda compartilhar os mesmos espaços públicos e privados dos detentores do Estado, igualmente detinha poderes sobre esse Estado. A tarefa do Partido dos Trabalhadores, em última análise, é não se transformar em uma “esquerda cordial”, aceitando um acordo com a burguesia conservadora e racista que lhe assegura apenas um poder ilusório em troca da perda da conquista do Estado, único caminho para a transformação de uma sociedade de privilégios em uma sociedade de cidadãos. Não há outra maneira de nos transformarmos em uma República.

*Marcio Tenenbaum é advogado, contador e membro da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia)

 

* Fonte: ABJD - Associação Brasileira de Juristas pela Democracia