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Emicida a Mano Brown: ‘Vários projetos de país foram solapados pela burguesia’

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Segunda temporada do podcast abre com diálogo entre representantes máximos de duas gerações da cultura hip-hop brasileira sobre história e o futuro do país

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O rapper Emicida foi o primeiro convidado da segunda temporada do podcast Mano a Mano, apresentado pelo também rapper Mano Brown, líder do Racionais MCs O episódio, que foi ao ar na última quinta-feira (24), contém quase três horas de conversa, com reflexões sobre possíveis projetos de país, pautados na educação e coletividade.

Com cerca de 17 anos de carreira, Emicida é considerado um dos maiores pensadores da cena artística brasileira atual. Iniciado nas batalhas de MCs, o rapper já lançou 10 discos, dois documentários e três livros. No ano passado, foi convidado para ser professor na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde lecionou durante três meses sobre arte, transformação e sociologia. Segundo ele mesmo, seu objetivo é dar sugestões de novas discussões importantes para o futuro do Brasil.

Emicida afirma acreditar que “cada ser humano possui uma matéria prima própria e rica, (que fazem) nossas histórias de vida”. E que, diante do sistema econômico capitalista, o artista tem dois caminhos: ser conduzido por quem não tem ligação com a cultura ou conduzir sua arte com as próprias mãos. E conduzi-la, nas palavras dele, torna possível repassar todo o conhecimento à sociedade, mantendo a raiz alimentada.

“Eu acredito que a gente precisa se munir de ideias para o que o Brasil pode ser. O momento que vivemos não é mais otimista ou esperançoso, mas é a realidade. A partir disso, devemos questionar qual país queremos viver, mas não chegaremos nele ignorando que grandes pensadores do Brasil já sugeriram coisas. Porém foram solapados pelo projeto da burguesia. Quantos caras, desde o José Bonifácio (1763-1838), queriam um projeto de reforma agrária? A gente precisa entender: houve pessoas que sonharam nesse país e somos a continuidade desse sonho”, afirma.

Futuro do Brasil

A conversa entre Emicida, 36 anos, e Mano Brown, com 51, marca um encontro entre grandes expoentes de duas gerações da cultura Hip-Hop brasileira. De um lado, o líder do icônico Racionais MC’s, considerado o maior rapper do Brasil. E do outro, o artista que revolucionou o posicionamento mercadológico do gênero. Apesar de representarem épocas diferentes, quando o assunto é o futuro do Brasil, ambos têm ideias convergentes. É quando a conversa tem mais peso e importância,.

Para o rapper convidado, o futuro do Brasil precisa passar por uma visão que defensa a coletividade. “Hoje vende a ideia do empreendedor, mas de maneira individualista. Nós precisamos fortalecer novamente os sindicatos, as associações de bairro. Nós precisamos construir coletivamente para tornar possível sugerir um projeto de país. Eu acredito que um país que não tem educação como prioridade maior, cava o próprio túmulo”, afirma Emicida.

Para aprofundar a reflexão, ele ressalta que o país lidera os mais diversos índices de violência, o que leva a sociedade a ainda mais individualismo. “A tolerância do brasileiro médio com a tragédia diária é constrangedora. A sociedade tolera a barbárie. A nossa capacidade de construir um país está ligado à organização coletiva. A gente precisa voltar a se encontrar e debater um projeto de país. A gente precisa pensar num jeito menos esquemático. Porém, a responsabilidade de quem quer um país melhor é fazer a discussão subir um degrau”, acrescenta.


Pós-escravidão e África

Por sua vez, Mano Brown disse acreditar que a conversa apresentada pelo podcast irá enriquecer os ouvintes mais jovens, tornando alguns “ensinamentos” e discussões menos elitistas. Ele explica que, para criar uma condição mais igualitária da sociedade, a população preta e periférica busca capacitação pela informação. “Essa busca pela informação é a liberdade do povo preto. Quando ele encontra esse caminho, é quando ele encontra sua estrela.”

Na leitura de Emicida, a igualdade para a população negra é um debate presente desde a pós-abolição da escravidão. Entretanto, ressalta que o período escravocrata “ficou na História”, mas sem criar uma identificação para o jovem negro. “A partir disso, a gente vê as consequências da escravidão até hoje. É por isso que a gente volta nesse assunto”, observa.

“À medida que a investigação histórica se torna algo mais sofisticado, ela começa a atentar contra o projeto de nação. Em algum momento, para se construir um país, as pessoas precisam esquecer. Mas você só consegue esquecer uma ferida que cicatrizou, não aquela que está aberta. E as feridas da escravidão na sociedade brasileira continuam ‘gritando’. Então, o Brasil não é uma nação, porque as feridas abertas na história continuam sangrando”, acrescenta.

Ao longo da entrevista, Emicida cita ainda sua conexão com a África, definitivamente estabelecida a partir da álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa (2015), produzido a partir de experiências em países daquele continente. Para ele, o futuro do Brasil e do mundo está no Hemisfério Sul. “A África e a América Latina são dois continentes irmãos só pela geografia. Então, precisamos ser irmãos enquanto povo também. A solução para o mundo virá do Hemisfério Sul. Isso é um fato. As sugestões do Hemisfério Norte até serviram para muita coisa, mas a salvação virá do lado de cá. Nós temos condições de redefinir o futuro do planeta”, defende.


Política brasileira

Durante a conversa, Emicida revisitou sua infância e sua iniciação com o Hip-Hop, além de relembrar um contato que teve com Mano Brown que marcou sua carreira: “Você me disse: ‘faz música boa e dá entrevista da hora’.” Como dois estudiosos, Mano Brown e Emicida compartilham experiências e histórias em comum e o papo se desdobra em assuntos relacionados à urbanização, política e interesses por História.

Ao falar sobre o presidente Jair Bolsonaro (PL), Mano Brown lamenta que parte da população comprou o discurso de “mais segurança” difundido pelo representante da extrema direita do país Como resposta, Emicida resumiu: “O Brasil está brincando de cabra-cega na beira do abismo. A pauta de segurança é o xaveco que o Bolsonaro usou pra chegar no poder”.

Para o entrevistado, toda eleição tem um grande tema, mas as eleições de 2018 foram marcadas pelo rompimento dos valores democráticos. “Teve um momento em que o Brasil debateu desigualdade e fome. Os governos do PT tiveram uma preocupação real sobre esses assuntos. Bolsa Família dividia a sociedade, mas foi um consenso que funcionou. Em algum momento, o Brasil institucional deixou de se preocupar com a manutenção da democracia para priorizar a manutenção de poder”, completa.

 

 

Ouça o episódio na íntegra aqui (Spotify)