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Em novo livro, James Suzman traça nossa relação contemporânea com o trabalho

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Em uma era de crescente desigualdade, saúde precária, insatisfação e até desespero ligado ao trabalho, surge um pensamento de esperança: talvez não precise ser assim

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Do breve, mas instrutivo, período que passara no mundo corporativo, o antropólogo James Suzman guarda três encontros na memória. O primeiro foi quando ele disse a um colega que não precisava gastar o meio milhão de libras alocado para uma tarefa porque podia fazê-la de graça. O colega ficou horrorizado: “Se você não gastar a verba, eles vão pensar que não estamos fazendo nada!”

Pouco depois, Suzman estava conversando com um diretor sobre o que fariam se ganhassem na loteria. Suzman pensou sobre a enorme casa do diretor e seu bônus anual. Ficou surpreso quando o homem lhe disse que, mesmo com um prêmio colossal, continuaria trabalhando.

povo kalahari 230522Antes de assumir esse cargo, ele tinha passado 15 anos entre os Ju/’hoansi, tribo de bosquímanos do leste da Namíbia, na África, conhecida por manter uma sociedade caçadora-coletora até o século XX.

Em 1966, um trabalho de antropologia revelaria que os Ju/’hoansi eram, em geral, bem alimentados e tinham vidas longas e felizes. Eles usavam a maior parte do tempo para descansar ou se divertir. Passavam apenas 15 horas por semana procurando alimentos, e guardavam pouco para o futuro, confiando no deserto ao seu redor para provê-los. Qualquer excedente individual era redistribuído entre o grupo.

Prevendo sanções sociais por egoísmo e autovalorização, a economia da tribo funcionava de forma a eliminar a desigualdade e os desejos materiais. Os antropólogos concluíram que os Ju/’hoansi trabalhavam quase exclusivamente para suprir necessidades imediatas.

No mundo corporativo, em contraste, nossos desejos parecem ilimitados, conduzidos por uma demanda cada vez maior por crescimento e produtividade. Para Suzman, as implicações dessa comparação foram sísmicas. Primeiro, ela sugeria que as suposições que sustentam a economia moderna – que somos competitivos por natureza e que nossos desejos sempre vão superar nossos meios – estavam erradas. Segundo, significava que, durante uma grande parte de nossa história, enquanto vagamos pela terra como caçadores-coletores, tínhamos mais tempo de lazer do que hoje.

Em uma era de crescente desigualdade, saúde precária, insatisfação e até desespero ligado ao trabalho, surge um pensamento de esperança: talvez não precise ser assim.

“A metade do valor de compreender a sociedade de caçadores-coletores é reconhecer que muitas coisas das quais nos consideramos reféns não fazem parte de nossa natureza”, diz Suzman. “Podemos rastrear nossa ética do trabalho e entender por que nos tornamos obcecados pela escassez. Pode haver outras maneiras de fazer as coisas.”

Trabalhamos de graça e monetizamos nossos hobbies. Trabalhamos sobre nossos corpos, nossos relacionamentos, nossos seres. Para muitos de nós, o trabalho pode ser a identidade básica.

“Você é um trabalhador, eu sou um trabalhador”, diz Suzman, quando nos encontramos em um café em Cambridge, onde ele mora. “Em seu nível mais fundamental, o trabalho é o processo de capturar e gastar energia.”

Suzman entrou no mundo corporativo em 2007, como diretor global de relações públicas da gigante de mineração de diamantes De Beers. Sob sua liderança, a empresa foi reconhecida por suas práticas de sustentabilidade e desempenho ambiental e social. Antropólogo que é, Suzman aprendeu a cultura da empresa e, rapidamente, escalou suas fileiras. “Mas, quanto mais eu estava lá, mais eu internalizava”, diz ele. “Comecei a me detestar terrivelmente, sentado lá pensando: ‘Como vai ficar meu bônus este ano?’”

Em 2009, os lucros da De Beers despencaram 99%, levando a uma reestruturação que destruiu sua equipe. “Fiquei péssimo”, diz. Suzman deixou o emprego em 2013: “Foi um dos dias mais felizes da minha vida”.

Ele montou então o grupo de pensadores Anthropos, que oferece abordagens antropológicas para solucionar problemas (a uma taxa corporativa de até 1,4 mil libras por dia, sendo metade disso destinada a ONGs) e depois escreveu um livro, Affluence Without ­Abundance (Afluência sem Abundância), sobre o que o mundo ocidental poderia aprender com os bosquímanos.

Suzman diz que seu tempo na De ­Beers o ensinou a ter empatia. “É muito fácil fazer uma caricatura dos empresários, mas eles são criaturas culturais – todos nós tentamos estabelecer significado e legitimidade em torno do que fazemos com as nossas vidas.”

Muitas pessoas não conseguem. Em uma pesquisa do YouGov, de 2015, 37% dos britânicos disseram que seu trabalho não contribuiu significativamente para o mundo. Em 2017, uma pesquisa Gallup de 155 condados da Grã-Bretanha descobriu que apenas um em cada dez europeus ocidentais se descrevia como engajado nos empregos. Para ­Suzman, trata-se de “um problema com a natureza do trabalho”, reflexo do boom do que o antropólogo David Graeber chamou de “empregos de merda”.

Não muito tempo atrás, sonhávamos em nos livrar totalmente do trabalho. Na década de 1930, John Maynard Keynes imaginou um futuro em que inovação tecnológica, ganhos de eficiência e crescimento de capital poderiam inaugurar uma era de ouro do lazer, na qual poderíamos satisfazer as nossas necessidades trabalhando 15 horas por semana.

[“Durante grande parte de nossa história, enquanto vagamos como caçadores-coletores, tínhamos mais tempo de lazer do que hoje”

Mas um século de esforços para reduzir o trabalho desapareceu após a Segunda Guerra Mundial. Embora a produtividade do trabalho tenha aumentado cerca de quatro ou cinco vezes nos países industrializados desde então, a jornada média semanal permaneceu teimosamente em pouco menos de 40 horas. “As pessoas gostam de estar ocupadas. Isso é uma coisa absolutamente fundamental: gostamos de ser habilidosos, gostamos de talhar, gostamos de escavar”, diz.

Em seu novo livro, Trabalho: Uma ­ História de Como Utilizamos o Nosso Tempo (cuja edição brasileira chega às livrarias na segunda-feira, 16 de maio), Suzman percorre milênios para traçar nossa relação contemporânea com o trabalho. E conclui que o problema é um “conjunto muito simples de suposições sobre a natureza humana, que são clara e comprovadamente erradas”.

A principal delas é a nossa preocupação com a escassez – uma ressaca do estado agrícola primitivo, cerca de 12 mil anos atrás, quando passamos de coletores a agricultores. Paradoxalmente, ao sermos capazes de cultivar e armazenar alimentos, ficamos fixados na possibilidade de não ter o suficiente.

A necessidade – para não mencionar o aspecto moral – de trabalho árduo era um mantra que se consolidou ao longo do tempo e persistiu mesmo quando o princípio condutor mudou da sobrevivência para o capital financeiro. O surgimento das cidades, há 8 mil anos, criou todo um novo tipo de trabalho impulsionado não por nossas necessidades materiais, mas por desejos: de status, prazer, riqueza e poder.

“A ganância se institucionalizou”, diz. Nossa proximidade física com a riqueza também exacerbou nossa ansiedade com a escassez, concentrando nossas mentes em como estávamos carentes, e criando uma “melancolia de aspiração constante”. As redes sociais funcionam como um “amplificador de ostentação”, assegurando-nos de nosso sucesso, mas aumentando nossos desejos materiais.

Mesmo os ultrarricos não conseguem sair da esteira. O crescimento tornou-se uma obsessão tão grande, diz Suzman, que “agora gastamos a maior parte de nossa energia fazendo coisas totalmente inúteis”. O vazio emerge de um sistema que transforma o trabalho em algo, ao mesmo tempo, sem alegria e sem-fim. “Esse sentimento me deixa vagamente otimista de que não vamos mais tolerar isso”, diz.

O Coronavírus expôs muito do que não estava funcionando no trabalho e criou a oportunidade de mudança. Os “trabalhadores essenciais” foram celebrados e revelou-se como eram subvalorizados. A mudança bem-sucedida para o trabalho em casa pode tornar os deslocamentos punitivos algo do passado.

As redes sociais abandonaram o famoso “todos os dias estou correndo” em favor do “você não precisa ser produtivo durante uma pandemia”. O apoio a ideias outrora marginais, que podem corrigir o distorcido equilíbrio entre vida profissional e pessoal, como uma renda básica universal ou uma semana de quatro dias, foi expresso até em recantos conservadores.

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Para Suzman, é uma prova de que, por mais “estupidamente intransigentes” que os humanos possam ser, “eles mudam quando a mudança lhes é imposta”. O que devemos fazer, diz, é aproveitar a oportunidade para explorar novas abordagens de organizar o capital.

“Sabemos que há um problema: os aspectos ambiental e da pobreza. O que temos de fazer é reconhecer que realmente temos esses problemas… e levar a experimentação a sério. Experimentar um salário mínimo universal ou formas de transformar blocos de escritórios em moradias são dois passos possíveis em direção a uma “ordem mundial futura”, diz Suzman. Afinal, não podemos voltar atrás.

Ao imaginar uma nova maneira de trabalhar, podemos começar nos perguntando se os nossos desejos são realmente infinitos – e quanto estamos dispostos a pagar por eles. Suzman é esperançoso. “Não conheço ninguém com desejos infinitos. Acho que para a maioria das pessoas eles são bastante modestos.”



Fonte: Carta Capital