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A percepção visionária de Véio. Um Ser Tão sergipano que luta e valoriza a memória

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Entre nuvens e um sol quente de verão no ano de 2010, há 14 anos, com a sede e a empolgação de uma jovem recém-formada em jornalismo e apaixonada por cultura popular, fui convidada pela professora e pesquisadora Maurelina Santos, uma grande enciclopédia da cultura de Sergipe que já não está mais entre nós, a conhecer o Museu do Sertão e um senhor chamado Cícero Alves, o Véio. Ela pediu que eu fosse preparada, pois a viagem seria longa.


O que eu ainda não sabia é que não era sobre a distância que Maurelina se referia, já que Véio habitava em Nossa Senhora da Glória, município do sertão sergipano cuja distância da capital Aracaju é em torno de 100km. Maurelina se referia à magnitude das narrativas e das obras de Véio, todas elas com histórias muito bem definidas sobre personagens, animais, sentimentos, sensações, lugares, acontecimentos e muito mais. Realmente, um dia seria pouco para uma aula tão densa e importante sobre arte e história.

Passados os 14 anos, não mais no sertão e sim na costa sergipana, em Barra dos Coqueiros, tive a honra e a oportunidade de entrevistar mais uma vez o Véio, que nunca foi só do sertão, mas do mundo inteiro. A casa, repleta de suas obras que já ultrapassam 17 mil exemplares, nos convida ao universo de Véio, exalando o cheiro de vida na madeira morta. “Eu tenho é história para contar”, me disse, e eu tive mais uma vez o privilégio em ouvi-las.

Véio me conta que, apesar de gostar de conversar, ele também gosta de seguir seu caminho sozinho. “A minha estrada foi só, já fui casado duas vezes, tive minhas filhas, cresci com minha família, mas gosto de fazer as coisas sozinho, sentar, lembrar das histórias, das memórias e fazer a minha arte. Cada uma dessas peças tem uma história, representa algo, por isso a arte não deve ser copiada, replicada, porque aí ela perde a sua essência, o seu propósito”, disse.


“Só faça o que você quiser, nunca faça o que os outros querem”

Cícero Alves, nascido em Glória, afirma que teve uma infância cercada por pessoas mais velhas, motivo de seu apelido ‘Véio’, mas, uma delas marcou a sua juventude com um conselho que ele levou para toda a vida. “Quando eu tinha uns 7 anos de idade, conheci Luiza, uma indígena, dos Xocó. As pessoas não gostavam muito dela porque ela era fechada, mas um dia, eu a ajudei com uma agulha e linha e a partir dali ela se afeiçoou a mim e me deu um conselho que eu segui por toda a vida e sempre que estou passando por um momento de dificuldade, eu lembro dela e sei que ela me socorre de onde estiver”, afirma.

Segundo Véio, Luiza disse que ele fizesse somente o que quisesse e não o que os outros quisessem para ele. Assim o fez. Contrariando a família e todo o preconceito da época e que ainda perdura até os dias atuais contra os artistas, Véio tornou-se artista plástico e se orgulha de sua trajetória e da maneira honesta com que leva a sua vida. “Eu passei por muito preconceito porque meus irmãos tinham emprego formal, mas o trauma que eu fiquei foi tão grande, que eu nunca comprei nada fiado, nunca tive cartão de crédito e nunca tomei dinheiro emprestado a ninguém, vivo com o que posso e compro como posso, sempre fui assim e sigo assim”.

Com uma memória excepcional e uma saúde de menino, Véio valoriza a história e o passado como fontes de saberes que não se esgotam e que são necessários para um progresso que muitos ainda, erroneamente, associam somente às tecnologias e às grandes obras arquitetônicas. “Como é que um governante vai ser prefeito de uma cidade se ele nem conhece como a cidade nasceu? Quem a fundou, quais foram as famílias que foram nascendo nela, o que era plantado, colhido? Que progresso existe sem arte? Em Sergipe, as cidades do interior não têm cinema, não têm teatro, não têm galerias, que progresso é esse que esquece da nossa história e da nossa cultura?”, lamenta.


Véio pelo mundo

Em Nossa Senhora da Glória, cidade em que nasceu, Véio diz que é uma pessoa pouco reconhecida, e que em Sergipe, a valorização das artes e dos artistas, de maneira geral, caminha a passos lentos, pois ainda está muito atrelada à falta de pertencimento e conhecimento por parte da população, das instituições e de quem mais pode fomentar esse acesso. Para ele, ser artista em Sergipe, sobretudo interiorano, é lutar com muita força e recursos próprios se quiser que a sua arte seja reconhecida fora do estado.

“Eu nunca procurei ajuda e recursos através da política por alguns motivos. Primeiro que muitas vezes não valorizam sua obra, querem pagar um valor mínimo ou não pagar, querem que você entregue como forma de presente para que seja divulgado, mas veja, se eu vivo disso, como vou sair distribuindo minhas obras que têm muito significado para mim, a quem não a valoriza? Segundo, minha obra não é moeda de troca, nem de favores, nem de voto, eu quero que ela seja apreciada por quem realmente sinta e valorize o trabalho e a história da peça”, assegura.

A obra de Véio é conhecida e reverenciada internacionalmente. O artista plástico já recebeu honrarias da Fundação Cartier, na França, convites para exposições em Portugal, entre outros lugares mundo afora. “Já fui a Paris duas vezes a convite da Fundação Cartier, mas é muito difícil para um artista interiorano, que não tem conhecimento do mundo, de outros idiomas, pegar um avião e descer lá sem saber falar francês, por exemplo. Chegando lá eles têm a equipe deles que recepciona, intérprete e tudo, conhecem muito a minha obra, me impressionei com isso, mas a gente não tem esse suporte aqui, até para fazer esses contatos com outros lugares”.

Recentemente, Véio virou doutor honoris causa pela Universidade Federal de Sergipe, e teve a sua obra estampada na moda autoral sergipana e suas peças exibidas para todo o país no Jornal Nacional. Apesar de tantos anos dedicados às esculturas, e de Sergipe ser uma grande fonte de inspiração, de história, de cultura popular, diante da singularidade da vida e obra de Véio, essas são apenas algumas conquistas, arduamente e tardiamente realizadas.

Véio concluiu a nossa prosa, me presenteando com a história da fundação de Boca da Mata, ou Nossa Senhora da Glória, e recitando um poema de Honório, que segundo ele, foi o maior poeta do sertão. Apesar de falarmos muito sobre o passado, Véio também pensa sobre o que virá a seguir. “Para o futuro, eu espero que a arte tenha mais espaço, que a sociedade em geral conheça o seu passado, os seus antepassados, as figuras históricas que caminharam antes de nós para que a gente chegasse até aqui. Uma terra sem memória é uma terra sem história, e sem ela, nós não existimos”.

Fonte: Mangue Jornalismo
texto e foto: Dijna Torres